quinta-feira, 25 de março de 2010

Fragmento: Capítulo 4 - Sessão de Nu em Luz Natural



Aquele era o orgulho da Faculdade de Artes, a mais renomada do país; sua pérola, e um dos fatores que a permitiam ser classificada como a melhor. O jardim não era grande, não tanto quanto os de outros tipos, e de outras instituições; não tinha uma estufa e nem mesmo um lago onde nadavam cisnes. Contudo, aquele não era um jardim qualquer, como um desses onde as pessoas simplesmente passeiam, fazem seus exercícios ou apenas sentam para descansar das correrias do dia-a-dia, como em um parque público. Aquele era um jardim fechado, inspirado nos de livros de histórias. Era rodeado por muros altos, cobertos de trepadeiras, orquídeas e outras flores do gênero. Servia como uma sala de aula a céu aberto, mas, claro, era muito maior do que é, ordinário, uma sala de aula. Só era possível ter acesso a ele por duas portas, em lados opostos, ligadas por uma viela principal, contudo uma delas ficava constantemente trancada. Apenas a porta que dava para o corredor dos vestiários permanecia aberta durante as aulas. Em outras circunstâncias, poderia se dizer, tratar tal construção de um capricho de algum rico botânico, ou de um mimo, oferecido por algum sultão a sua esposa mais amada; tal o cuidado com que foi projetado, dês de a escolha das flores, plantas e árvores; até a arquitetura e decoração do ambiente, repleto de mosaicos, arabescos, estátuas e esculturas. O que ordinário se encontra em uma faculdade de artes. No centro desse jardim havia uma pequena praça de formato circular, e no meio desta, uma fonte de temática clássica: alguns amores deitados aos pés de uma ninfa portando um jarro, do qual escorria a água. Dispostos ao redor da fonte existiam alguns bancos e outras estátuas, cópias de esculturas famosas. Todo o local era cuidadosamente planejado para que, desse pequena praça, a impressão fosse a de estar em um lugar completamente diferente de uma faculdade de artes, no centro de uma grande cidade; o objetivo era levar o observador a uma viagem aos antigos bosques mitológicos, e passar a impressão de que atrás de alguma árvore ou arbusto, poderia se encontrar uma ninfa adormecida ou algum fauno brincalhão. Para tanto, todas as árvores de copas largas, jardins de rosas, margaridas e outras flores e, foram plantados em locais estratégicos, de modo a esconder os muros (cujos pequenos locais em que apareciam davam apenas a impressão de ser uma continuidade da mata), as entradas e mesmo o topo dos prédios mais próximos. Até mesmo o som da água que caía da fonte foi propositalmente articulado para abafar ao máximo possível os ruídos do mundo exterior.
De fato, não existia em nenhuma outra faculdade um jardim como aquele, era realmente uma pérola; uma obra de arte em si, que ajudava a construir a reputação que a instituição tinha, de ser a melhor faculdade de artes do país, dada a fama mítica do local que já servira mesmo como cenário para alguns filmes de época. Poucos tinham acesso a esse lugar, entre esses privilegiados, estavam os professores e os alunos do disputadíssimo curso de Pintura em Luz Natural.


“... – B ± Raiz quadrada de..., duas colheres de chá de açúcar, um tablete de manteiga, misturar tudo com a farinha e..., a soma dos quadrados dos catetos é..., π = 3,14...” Andando pelo corredor dos vestiários, o rapaz tinha uma única preocupação, constante em sua cabeça: “...A célula é composta de três partes, sendo elas: núcleo..., ir acrescentando o leite aos poucos enquanto a massa é batida..., e..., Δ sobre 2 * A, é igual a...” Que se abalou logo ao ver a linda garota de curvas esculturais, envolta apenas em um roupão de banho justo, que, semi-aberto, deixava a mostra parte dos seios arredondados; caminhar em sua direção com um ar sonolento de dríade, e entrar no vestiário feminino. O rapaz já havia estado no famoso jardim fechado, e ao ver essa garota desconhecida (que, como deduzira acertadamente, estava lá com o mesmo propósito que o seu), teve a impressão de que uma das estátuas de ninfa ganhou vida e agora estava deixando o lugar. Tal foi o efeito encantador que a beleza dela teve sobre ele, e que certamente havia tido sobre todos os outros rapazes que estavam lá; tal foi o efeito que tinha abalado sua convicção, a única preocupação em sua cabeça: “Não!” Ele, pensava, dizendo pra si mesmo: “Não! Eu não vou ficar de pau duro!” E tentava desviar o pensamento “...Levar ao forno em 90° por no máximo..., A velocidade média de um objeto em movimento é determinada pela..., Não! Eu não posso ficar de pau duro!” Todas elas deveriam estar lá, “as vadias do curso de artes”, ele pensava, “as vadias do curso de artes que haviam rido”. As mesmas que haviam rido dele, quando, acidentalmente tinha ficado de pau duro. E agora, novamente ele estava indo, para o mesmo lugar, fazer a mesma coisa. Ia por que precisava da grana, ele pensava, dizia pra si mesmo, precisava da grana... Atravessou a porta e seguiu pela viela até a pequena praça, no centro do jardim. Não olhou no rosto de ninguém. De cabeça baixa, cumprimentou o professor e deu uma rápida espiada ao redor. Os rapazes de caras desconsoladas e as garotas dando risadinhas, tentando disfarçar com as mãos. “Muito bem, vamos começar!” Disse o professor. O rapaz subiu no pequeno pedestal de mármore e, deixando cair o roupão de banho, assumiu sua postura. Não podia fechar os olhos, era obrigado a encarar as “vadias do curso” que haviam rido dele um mês atrás, e que agora se encontravam sentadas a sua frente, segurando os pincéis, protegidas atrás de suas telas. Até mesmo a ruiva estava lá, a piranha que tinha feito aquilo. “Estava frio naquele dia...” Ele tentava se consolar. “Se fosse calor elas teriam visto... Piranha... Como elas são gostosas... E essa ruiva...” Pensava, e aos poucos a raiva ia se misturando a excitação. “Vagabunda, quero ver você fazer isso hoje, ficar cruzando as pernas, abrindo essas pernas pra me mostrar a calcinha... Não! Eu não vou ficar de pau duro! Eu não vou ficar de pau duro!...” E pensando assim, não conseguiu resistir a tentação de olhar nos olhos da garota ruiva a sua frente... “Se eu te pego de jeito você vai ver sua vagabunda, vou botar até o talo pra você gritar...” E nesse instante ela também olhou pra ele, mordendo os lábios de um jeito propositalmente provocante, abrindo as pernas suavemente... Os rapazes desviaram os olhos, alguns debochando, as garotas não conseguiam mais conter o riso. “Vamos parar com essa palhaçada!” O professor gritou, entregando o roupão de banho ao modelo, completamente constrangido. Outra vez ele estava de pau duro.


Ela era assim, brincalhona, às vezes até inconseqüente. Quase que completamente irresponsável. Mas os seus pais nunca negaram, e nem os professores se furtavam em dizer, ela era uma garota muito talentosa, e dês de muito cedo tinha mostrado isso. Filha única de pais burgueses, Alexa sempre fora pressionada a seguir na vida os caminhos que os pais escolheram para si próprios mas nunca tiveram a oportunidade de trilhar. O pai sonhava em ser médico, ser chamado de Dr., e, embora rico, dono de uma empresa com dezenas de funcionários, nunca havia sido chamado pelo título de Dr.; sempre patrão, chefe, senhor, mestre... Mas nunca Dr. E se culpava pela falta de estudos, nunca havia cursado uma universidade. Construiu sua fortuna com muito suor, e uma boa ajuda do sogro. A mãe, filha de uma família de latifundiários, sonhava com a fama; estudou piano ainda quando garotinha e mais tarde ingressou em um conservatório, contudo, não tinha o talento necessário para ser uma grande concertista. Fez algumas apresentações e viajou durante um tempo com a orquestra, alcançou uma fama relativa, e foi em uma dessas viagens que conheceu o homem que viria a ser o seu futuro marido, com o qual teria uma filha, e pela qual abandonaria a vida de musicista. Alexa tinha o que ambos não tiveram, a inteligência e as condições para se tornar uma Doutora, e o talento para ser uma grande concertista. Mas, diferente do que se observa em muitas outras famílias burguesas, nenhum dos pais realmente persistiu com empenho em moldar a filha a sua maneira. Pelo menos não até verem o talento que ela demonstrava para as artes, em especial a pintura. Foi assim que ela ingressou na maior faculdade de artes do país (não até aprender a gerir os negócios familiares; desejo dos pais), e realizava o tão concorrido curso, cujas aulas se ministravam no jardim.



sexta-feira, 19 de março de 2010

Observação: Capítulos.

Estou escrevendo com o prazo apertado, e assim que termino um capítulo, posto o fragmento aqui no blog, sem tempo de fazer a revisão e correções necessárias. Desse modo, desculpem os possíveis erros e construções ruins. Assim que tiver um tempo, farei as revisões e atualizo as postagens.

terça-feira, 16 de março de 2010

Fragmento: Capítulo 3 - Roman Noir

Um único gole, e o copo de uísque está vazio; duas pedras de gelo ainda guardam o vestígio castanho do licor. Visto o casaco e ponho o chapéu; lá fora cai uma leve garoa, mas o vento, esse sim é uma navalha, o que é comum nessa cidade, nessa época do ano. Saio sem olhar pra trás, com passos rápidos caminho pela calçada. As pessoas também caminham apressadas, muitas delas, guarda-chuvas abertos, capas sobre os ombros; ninguém sequer olha pra mim, como é comum nas grandes cidades; cada um absorto em seu próprio universo silencioso, e o barulho atordoante de buzinas, motores, gritos e música alta; todos os cartazes, propagandas, anúncios e outdoors; existem como que em um mundo a parte. É a respiração pesada da cidade. Os carros passam rápidos, respingando os transeuntes com aquela lama negra que se forma nas sarjetas: lama de asfalto, poeira e óleo diesel, brilhante como o arco íris. Um ônibus passa e joga lama em mim e nas pessoas que caminham ao meu redor, ouço alguns palavrões ao longe, não me importo, apenas limpo o rosto e continuo caminhando com os passos rápidos, sentindo apenas a garoa bater contra minha face, e toda a tensão do que me aguarda.

Dizem que o cérebro, quando se encontra diante de alguma situação de risco, registra o máximo de detalhes possível, a fim de encontrar alguma possibilidade de fuga, muito mais detalhes do que costumamos notar. E depois de tudo, é engraçado observar como a mente nos prega suas peças, e uma coisa que durou apenas alguns segundos, volta agora como um filme em câmera lenta. Ainda vejo as minúsculas gotas de chuva caírem a minha frente, a expressão na face, e o olhar distante das pessoas que caminham distraídas, absortas em seus próprios universos silenciosos, o rosto da modelo na propaganda de perfume e o cartaz do filme na lateral de um ônibus. Agora, ao recordar, ouço cada palavra da canção, era Beatles, agora eu lembro: “Here come old flattop, he come grooving up slowly...” Come Together, era essa a música, come together, come together... Venha junto... Chegue perto... Venha comigo... Eu ouvia, enquanto a minha mão, escondida no bolso do paletó, sentia o aço frio do revólver. Enquanto eu caminhava, sujo da lama negra de arco íris. Eu ouvia a música da cidade, lenta, como em um aparelho de baixa rotação.

As vezes é engraçado pensar em como a vida, assim como nos romances ruins, está cheia de clichês, lugares comuns e piadas de mal gosto. Na verdade, até conhecer R., sempre achei que a vida fosse apenas uma grande piada de mau gosto, e a minha, em particular, uma sucessão de derrotas, uma após a outra. Confesso que ainda sou um pessimista, e ainda encaro a vida em geral como uma brincadeira sem graça: repare no sujeito sentado no bar da esquina, bebendo sua cerveja e comentando sobre o jogo; esse sujeito sempre faz o seu trabalho, como mandam que o faça, e recebe no final do mês o seu salário, com ele, paga as contas, faz as compras e não lhe sobra mais quase nada. Esse sujeito sonha em ter um carro, contudo, o salário que recebe mal dá pra pagar o aluguel e se alimentar; ele sabe que para ter um carro é preciso ter um salário melhor, no entanto, para ter um salário melhor é preciso estudar: concluir os estudos, se formar em uma universidade, quem sabe fazer uma pós-graduação. Mas é realmente uma pena, pois esse sujeito trabalha tanto, e faz tantas horas extras que não lhe sobra tempo pra estudar; sem os estudos ele ganha um salário miserável, que complementa fazendo horas extras. A emprese paga a esse sujeito um salário miserável por que sabe que ele terá de complementá-lo através das horas extras, que ele não é “obrigado” a fazer, mas faz, com medo de ser demitido, pois se for demitido não conseguirá outro emprego, por que não tem “estudos” e já não é mais tão jovem, e assim não poderá pagar o aluguel e nem sustentar a família, assim os filhos serão obrigados a abandonar os estudos para trabalhar, considerando isso como uma hipótese positiva, caindo no mesmo ciclo desse sujeito do bar, e por isso esse sujeito não dorme. Em uma hipótese negativa, os filhos desse sujeito iriam se marginalizar, quem sabe entrando para o ramo da prostituição ou do crime; por isso esse sujeito não dorme, e se distrai assistindo TV, que o leva para longe de sua realidade.

Agora repare no indivíduo sentado em uma mesa no restaurante do outro lado da rua; bem vestido, acompanhado de uma bela mulher, sorrindo enquanto saboreia um vinho caro e comenta sobre a ópera. Esse indivíduo é o filho de um empresário, e gerencia os negócios do pai; é formado em uma boa universidade e nunca precisou trabalhar duro na vida. Sempre teve tudo o que quis, e não sabe como é ser pobre. Por causa disso ele não obedece ao pai (que um dia precisou trabalhar duro pra erguer sua empresa) e não faz o reajuste no salário dos funcionários, que continua quase o mesmo há muitos anos, um salário miserável. Por conta de sua educação em uma excelente universidade, que ensina a maximizar os lucros com um mínimo de custos, esse indivíduo não faz os reajustes salariais e tão pouco aumenta a mão de obra, no entanto, visto que a produção aumenta, ele exige que seus funcionários façam horas extras para dar conta da demanda e aumentar o lucro, e demite aqueles que se recusam a seguir “a política da empresa”. Esse indivíduo faz isso, por que sabe que a fila de desempregados, a “mão de obra contingente”, é enorme, todos os dias, na porta de sua empresa procurando trabalho, aceitando de bom grado o salário miserável que ele paga, dispostos a fazer quantas horas extras sejam necessárias. Tudo isso porque as empresas não estão contratando mão de obra, a fim de maximizar os lucros com o mínimo de custos, como os seus gerentes aprendem nas excelentes universidades que cursam. Ou porque a mão de obra não é qualificada, uma vez que os desempregados da fila não cursaram essas mesmas excelentes universidades dos gerentes das empresas. Ou porque já não são tão jovens ou não possuem experiência; pois as empresas só contratam funcionários experientes. Assim, além dos estudos é preciso ter ainda experiência. Por isso o indivíduo sentado na mesa do restaurante também não dorme, e se distrai assistindo suas óperas e espetáculos teatrais, que o levam para longe de sua realidade; pois no fundo ele tem medo, de saber que a bela mulher talvez só esteja com ele pelo dinheiro, de saber que ele precisa aumentar a empresa de qualquer maneira, para que ela continue competitiva e não venha a falir, para que ele não fique pobre ao falir, e pobre, ele tenha que vender sua bela mansão e seus belos carros, e perder sua bela namorada, e entrar para a fila dos desempregados, pois apesar de seus estudos, sempre foi sustentado pelo pai e nunca precisou trabalhar, e as empresas só contratam funcionários comprovadamente experientes. Isso em uma hipótese positiva, pois em uma possibilidade negativa, esse indivíduo poderia sair do restaurante com seu belo carro e sua bela namorada, e em um sinal de trânsito ser vítima de um assalto que termine em tragédia por conta de uma atitude inconseqüente, ou simplesmente por ódio do assaltante, em saber que teve que largar os estudos, vivenciou a miséria e entrou para a vida do crime por culpa de um playboyzinho como esse, que demitiu seu pai. E agora diga que a vida não é como uma brincadeira sem graça?!

Talvez por isso eu seja um bom crítico, talvez um romancista ruim, mas um bom crítico. Por que sei que a vida é como um desses romances baratos – que sou obrigado a ler – cheio de clichês e piadas de mau gosto; um Roman Noir de banca de jornal. Um bom livro, pelo contrário, deve ser forte, como um tapa na cara ou um balde de água gelada, deve ser capaz de despertar o leitor dessa inércia, fazer com que ele veja que é apenas mais um perpetuador das misérias do mundo, e assim tente fazer algo para mudar sua situação; um bom livro deve ser como um espelho, que mostre ao leitor que ele é apenas mais um palhaço rindo da piada de mau gosto que é a vida.

No entanto, como eu já havia dito as coisas só começaram a mudar de perspectiva depois que conheci R.


segunda-feira, 15 de março de 2010

Fragmento: Capítulo 2 - Apartamento na Rua Saint Simon


“................................” “Sim, sim. “Então está combinado.” “..................., .................?” “É, no mesmo lugar.” “.............................?!” “Claro, pode ser...” “................................................................” “Então está bem, até mais tarde.” “.........” “ Beijo. Tchau.”

“Podemos continuar?” “Sim, claro, desculpe interromper mais era uma ligação importante.” “Entendi, mas como eu estava dizendo, o apartamento possui apenas um dormitório, como você pode ver, mas é confortável e aconchegante. Mesmo sendo um quarto pequeno. Originalmente o apartamento tinha dois quartos, o principal, e esse menor. Mas a antiga dona resolveu desfazer o antigo quarto, usando o espaço para ampliar a sala; acho que, por viver sozinha, e, imagino, não ter familiares, não tinha necessidade de dois quartos. Eu, pelo menos, nunca vi ela receber visitas de ninguém da família: pai ou mãe, sabe. Eu moro nesse prédio a muitos anos sabe, dês de antes de tudo acontecer...” “Aqui fica o banheiro?” “Ah! Sim, é nessa porta, pode entrar.” “Nossa! É grande.” “Sim, o banheiro foi o único cômodo que ela não reduziu; pode ver que é muito bonito, os azulejos e pisos, o espelho ainda está em ótimas condições, e ela colocou até esta banheira imensa...” “Uma jacuzzi.” “Sim, que seja. Só uma louca pra colocar uma piscina no banheiro [gargalhada].” “Muito bonito...” “Mas como eu dizia, moro aqui há muitos anos, e sei bem o tipo de visitas que ela recebia... Esta é a cozinha, que é anexa a sala como você pode perceber, também foi praticamente desfeita pra dar lugar ao cômodo.” “Sim, essa sala é realmente enorme...” “Enfim, de noite sabe, do tipo de visitas que ela recebia, eu sei bem, sabe, de noite as vezes ela trazia homens pra cá, eu já ouvi, várias vezes, e vi... Não que eu ficasse prestando atenção, você sabe, porque eu sou uma pessoa discreta, diferente de outros que moram aqui, que gostam de prestar atenção na vida alheia; mas, entende, as vezes eu via, mesmo sem querer, e já teve vezes de ela trazer até mais de um na mesma noite, ao mesmo tempo. Acho que por isso ela queria uma sala tão grande, pra poder fazer suas orgias...” “A sala é mesmo enorme, e quase não tem moveis, uma sensação de vazio!” “É verdade... Está quase tudo exatamente como foi deixado, dês de que tudo aconteceu... Como estava dizendo, então, sabe, ela dizia, que eram modelos, sabe, os homens que ela trazia pra cá, de noite, por que ela dizia que a melhor luz era a da madrugada. Eu não entendo dessas coisa, mas aposto que não passava de desculpas pra que ela pudesse fazer suas orgias sem ser incomodada, as vezes ela até colocava música, aposto que pra abafar os sons, de sua perversão. Esses artistas são todos uns loucos, bêbados e depravados, a maioria deles, uns drogados; não são como os de antigamente sabe, que pintavam os santos e as passagens da bíblia, e as imagens do Cristo... Como aquele, Leonardo, e Vivaldi, ele era padre não era? E... Enfim. Ela dizia que era artista, mas só pintava perversão, pessoas nuas, gente morta, e ‘aquela coisa que ninguém entende nada’. Como é mesmo o nome? Ah, não importa! Pra mim é só um monte de borrões de tinta. E chamam de arte; até o meu netinho faz isso; o meu netinho sabe, ela gostava de brincar com ele, mas eu sempre dizia ‘.... Entra pra dentro que o corredor não é lugar de brincadeiras! Vou dar queixa pra sua mãe.’ Ainda bem, por que depois tudo aquilo aconteceu e... Deus me livre, o meu neto, ainda bem. E eu aposto que ela usava drogas, sabe; depois que tudo aconteceu, quando a polícia esteve aqui revirando tudo e nos enchendo de perguntas – e eu respondia tudo por que podia ser importante né – acho que eles também encontraram drogas; encontraram muitas garrafas de bebidas, isso eu vi, bebidas que pareciam ser caras, vinhos finos sabe, coisa chique...” “O piso realmente está em muito boas condições não é, eu estava reparando, madeira muito resistente. Mas o papel de parede não está em tão bom estado de conservação, algumas manchas de umidade, e está rasgado em alguns cantos...” “É verdade, e tem essa pequenas manchas de tinta que ela deixou... Mas eu posso dar um jeito nisso, caso você venha a ficar é claro. Sabe, dês de que tudo aconteceu, o caso né, você deve ter ouvido falar, todo mundo ouviu; dês de que aconteceu, o valor desse imóvel subiu muito sabe, muita gente interessada, você não acredita em como as pessoas podem ser depravadas, principalmente esses artistas; alguns vieram aqui, diziam que o lugar era ideal por causa da iluminação ou algo parecido, que o lugar tem uma boa luz natural, sei lá, que por isso ela tinha feito as modificações no apartamento sabe. Mas eu sei que só vieram por causa do que aconteceu aqui mesmo, dava pra ver sabe, por que eu tenho esse dom que Deus me deu, de conseguir ver nos olhos das pessoas quando elas estão tentando me enganar. A um tempo atrás um cineasta quis alugar o apartamento por uns meses...

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trecho Música: Encontro na Madrugada (Balada Para um Assassino)


Dirigiu mais de mil quilômetros
Vindo de um lugar distante
Três dias no volante
De um opala 82
Rodovia deserta
Alta madrugada
Para o carro, apaga os faróis
Silêncio na beira da estrada

Ninguém nunca vai saber o que aconteceu
Dois corpos mutilados em um quarto de hotel
Sob o manto da noite ele caminha
O sangue na adaga deixa o rastro de silêncio
Ninguém nunca vai saber o que aconteceu
Dois corpos mutilados em um quarto de hotel
Nenhum passo ecoa pela noite
Nenhuma estrela brilha no céu

Abre o vidro, acendo um cigarro
Logo um brilho rasga a neblina
45 engatilhada, os dedos tremem
Lentamente outro carro se aproxima
Pow, pow. Disparos na escuridão
O sangue escorre pelo asfalto
E a lua ilumina um corpo no chão
Pow, pow. Tudo acontece de repente
Pedaços de vidro voam alto
Mais um corpo no banco da frente
As horas passam, logo vai amanhecer
Não há tempo de olhar pra trás
Pega a grana, esconde as provas, liga o carro
E ganha a estrada novamente

Ninguém nunca vai saber o que aconteceu...



Bem, tudo o que posso dizer é que esta canção é baseada em um filme. Queria escrever uma dessas musicas que contam histórias mas não sei bem se consegui. Enfim, é um blues em Dó.

Fragmento: Capítulo 1 - Vernissage



É estranho imaginar como a mente é capaz de nos pregar peças, de como esquecemos e nos lembramos; e às vezes até com detalhes, de coisas que nunca aconteceram realmente. Às vezes basta uma sugestão, e as lembranças estão lá: uma tarde no parque ou um passeio pelo shopping, o vendedor de pipocas e os cartazes de cinema; está tudo lá: as cores, os cheiros e sons, mas na verdade nunca aconteceu. De como vemos uma coisa familiar e não a reconhecemos, ou de como vemos algo pela primeira vez e ele nos parece tão familiar. Um déjà vu. É estranho como a mente nos prega suas peças e nem sequer nos damos conta disso.


Por mais castanhos que fossem aqueles olhos, sempre achei que no fundo eles guardavam um matiz de verde-mar, algo distante. Sempre vi isso dês de a primeira vez. No entanto, agora tão de perto, começo a suspeitar de que esse verde esteve sempre em meu olhar, na minha mente, como uma de suas trapaças. Aqueles olhos não eram profundos, tão pouco misteriosos, como querem esses romances baratos - que sou obrigado a ler – que sejam os olhos da amante, que guardam segredos e enigmas. Pelo contrário, não havia enigma algum, dês de o início eles me pareceram algo familiar, e com o tempo, aprendi a conhecer cada mínima variação em seus olhares, quase sempre era capaz de dizer o que ela queria de mim, sem que fosse preciso uma única palavra, e quando fazíamos amor, havia uma ligação inexplicável, cada beijo, cada carícia, cada mordida; eu sabia exatamente quando ela queria de um jeito suave ou com violência, quando ela queria apenas sentir minhas mãos passeando por seu corpo, ou quando ela queria que eu puxasse seus cabelos com força enquanto a possuía. E depois de todo esse tempo, ainda agora, tão de perto, eu sei exatamente o que esses olhos querem de mim.


Às vezes a mente nos prega peças, e uma coisa acontece tão rápido que mal nos damos conta daquele fato, e depois, ao tentar reconstituí-lo, se torna algo como assistir um filme em câmera lenta. Foram tantos detalhes em uma sucessão tão rápida, que agora, ao rememorá-los, tudo gira de vagar, como naqueles pesadelos em que algo nos persegue, e por mais rápido que tentamos correr, na verdade não saímos do lugar e, tão pouco, conseguimos acordar. Esse foi exatamente assim, em câmera lenta: o corpo ensangüentado no chão, o estampido do disparo, o toque da campainha e as batidas nervosas na porta, os primeiros degraus da escada até a entrada, os passos rápidos pela rua movimentada, o brilho do gelo no fundo do copo vazio de uísque... Até o início. O início. Devo contar como a conheci.


“Bonita, não acha?” “Como?” “A pintura, quero dizer, não acha bonita?” “Ah sim! Realmente, muito bonita...”


Respondi a estranha que me abordava, mais por gentileza, do que por ter realmente uma opinião a respeito da tela a minha frente. Ela deve ter notado que, diferente dos demais convidados naquela vernissage, que simplesmente saltavam entre uma pintura ou outra, como quem folheia as páginas de um livro conhecido, com a segurança de suas bases intelectuais e opiniões formadas; eu, por outro lado, já devia estar em pé diante daquela tela a uns quinze minutos, tentando decifrar aquele enigma. Era uma pintura abstrata, e devo confessar que nunca fui capaz de compreender esse tipo de manifestação artística. Como escritor, estou familiarizado com aquilo que pode ser traduzido em palavras, com tudo aquilo passível de ser descrito ou narrado. Sou na verdade um racionalista, e aprecio a segurança que as palavras e a narrativa me proporcionam. Sempre apreciei as obras figurativas, das clássicas às contemporâneas: uma paisagem é uma paisagem e um retrato - um retrato, não importando o período ou o estilo da obra. Em particular, sempre gostei dos artistas que tentaram mesclar essas duas linguagens. A abstração, por outro lado, me assusta. Estava ali, em um esforço inútil de traduzir em palavras aquela pintura, quando a bela mulher de cabelos ruivos me abordou.