terça-feira, 16 de março de 2010

Fragmento: Capítulo 3 - Roman Noir

Um único gole, e o copo de uísque está vazio; duas pedras de gelo ainda guardam o vestígio castanho do licor. Visto o casaco e ponho o chapéu; lá fora cai uma leve garoa, mas o vento, esse sim é uma navalha, o que é comum nessa cidade, nessa época do ano. Saio sem olhar pra trás, com passos rápidos caminho pela calçada. As pessoas também caminham apressadas, muitas delas, guarda-chuvas abertos, capas sobre os ombros; ninguém sequer olha pra mim, como é comum nas grandes cidades; cada um absorto em seu próprio universo silencioso, e o barulho atordoante de buzinas, motores, gritos e música alta; todos os cartazes, propagandas, anúncios e outdoors; existem como que em um mundo a parte. É a respiração pesada da cidade. Os carros passam rápidos, respingando os transeuntes com aquela lama negra que se forma nas sarjetas: lama de asfalto, poeira e óleo diesel, brilhante como o arco íris. Um ônibus passa e joga lama em mim e nas pessoas que caminham ao meu redor, ouço alguns palavrões ao longe, não me importo, apenas limpo o rosto e continuo caminhando com os passos rápidos, sentindo apenas a garoa bater contra minha face, e toda a tensão do que me aguarda.

Dizem que o cérebro, quando se encontra diante de alguma situação de risco, registra o máximo de detalhes possível, a fim de encontrar alguma possibilidade de fuga, muito mais detalhes do que costumamos notar. E depois de tudo, é engraçado observar como a mente nos prega suas peças, e uma coisa que durou apenas alguns segundos, volta agora como um filme em câmera lenta. Ainda vejo as minúsculas gotas de chuva caírem a minha frente, a expressão na face, e o olhar distante das pessoas que caminham distraídas, absortas em seus próprios universos silenciosos, o rosto da modelo na propaganda de perfume e o cartaz do filme na lateral de um ônibus. Agora, ao recordar, ouço cada palavra da canção, era Beatles, agora eu lembro: “Here come old flattop, he come grooving up slowly...” Come Together, era essa a música, come together, come together... Venha junto... Chegue perto... Venha comigo... Eu ouvia, enquanto a minha mão, escondida no bolso do paletó, sentia o aço frio do revólver. Enquanto eu caminhava, sujo da lama negra de arco íris. Eu ouvia a música da cidade, lenta, como em um aparelho de baixa rotação.

As vezes é engraçado pensar em como a vida, assim como nos romances ruins, está cheia de clichês, lugares comuns e piadas de mal gosto. Na verdade, até conhecer R., sempre achei que a vida fosse apenas uma grande piada de mau gosto, e a minha, em particular, uma sucessão de derrotas, uma após a outra. Confesso que ainda sou um pessimista, e ainda encaro a vida em geral como uma brincadeira sem graça: repare no sujeito sentado no bar da esquina, bebendo sua cerveja e comentando sobre o jogo; esse sujeito sempre faz o seu trabalho, como mandam que o faça, e recebe no final do mês o seu salário, com ele, paga as contas, faz as compras e não lhe sobra mais quase nada. Esse sujeito sonha em ter um carro, contudo, o salário que recebe mal dá pra pagar o aluguel e se alimentar; ele sabe que para ter um carro é preciso ter um salário melhor, no entanto, para ter um salário melhor é preciso estudar: concluir os estudos, se formar em uma universidade, quem sabe fazer uma pós-graduação. Mas é realmente uma pena, pois esse sujeito trabalha tanto, e faz tantas horas extras que não lhe sobra tempo pra estudar; sem os estudos ele ganha um salário miserável, que complementa fazendo horas extras. A emprese paga a esse sujeito um salário miserável por que sabe que ele terá de complementá-lo através das horas extras, que ele não é “obrigado” a fazer, mas faz, com medo de ser demitido, pois se for demitido não conseguirá outro emprego, por que não tem “estudos” e já não é mais tão jovem, e assim não poderá pagar o aluguel e nem sustentar a família, assim os filhos serão obrigados a abandonar os estudos para trabalhar, considerando isso como uma hipótese positiva, caindo no mesmo ciclo desse sujeito do bar, e por isso esse sujeito não dorme. Em uma hipótese negativa, os filhos desse sujeito iriam se marginalizar, quem sabe entrando para o ramo da prostituição ou do crime; por isso esse sujeito não dorme, e se distrai assistindo TV, que o leva para longe de sua realidade.

Agora repare no indivíduo sentado em uma mesa no restaurante do outro lado da rua; bem vestido, acompanhado de uma bela mulher, sorrindo enquanto saboreia um vinho caro e comenta sobre a ópera. Esse indivíduo é o filho de um empresário, e gerencia os negócios do pai; é formado em uma boa universidade e nunca precisou trabalhar duro na vida. Sempre teve tudo o que quis, e não sabe como é ser pobre. Por causa disso ele não obedece ao pai (que um dia precisou trabalhar duro pra erguer sua empresa) e não faz o reajuste no salário dos funcionários, que continua quase o mesmo há muitos anos, um salário miserável. Por conta de sua educação em uma excelente universidade, que ensina a maximizar os lucros com um mínimo de custos, esse indivíduo não faz os reajustes salariais e tão pouco aumenta a mão de obra, no entanto, visto que a produção aumenta, ele exige que seus funcionários façam horas extras para dar conta da demanda e aumentar o lucro, e demite aqueles que se recusam a seguir “a política da empresa”. Esse indivíduo faz isso, por que sabe que a fila de desempregados, a “mão de obra contingente”, é enorme, todos os dias, na porta de sua empresa procurando trabalho, aceitando de bom grado o salário miserável que ele paga, dispostos a fazer quantas horas extras sejam necessárias. Tudo isso porque as empresas não estão contratando mão de obra, a fim de maximizar os lucros com o mínimo de custos, como os seus gerentes aprendem nas excelentes universidades que cursam. Ou porque a mão de obra não é qualificada, uma vez que os desempregados da fila não cursaram essas mesmas excelentes universidades dos gerentes das empresas. Ou porque já não são tão jovens ou não possuem experiência; pois as empresas só contratam funcionários experientes. Assim, além dos estudos é preciso ter ainda experiência. Por isso o indivíduo sentado na mesa do restaurante também não dorme, e se distrai assistindo suas óperas e espetáculos teatrais, que o levam para longe de sua realidade; pois no fundo ele tem medo, de saber que a bela mulher talvez só esteja com ele pelo dinheiro, de saber que ele precisa aumentar a empresa de qualquer maneira, para que ela continue competitiva e não venha a falir, para que ele não fique pobre ao falir, e pobre, ele tenha que vender sua bela mansão e seus belos carros, e perder sua bela namorada, e entrar para a fila dos desempregados, pois apesar de seus estudos, sempre foi sustentado pelo pai e nunca precisou trabalhar, e as empresas só contratam funcionários comprovadamente experientes. Isso em uma hipótese positiva, pois em uma possibilidade negativa, esse indivíduo poderia sair do restaurante com seu belo carro e sua bela namorada, e em um sinal de trânsito ser vítima de um assalto que termine em tragédia por conta de uma atitude inconseqüente, ou simplesmente por ódio do assaltante, em saber que teve que largar os estudos, vivenciou a miséria e entrou para a vida do crime por culpa de um playboyzinho como esse, que demitiu seu pai. E agora diga que a vida não é como uma brincadeira sem graça?!

Talvez por isso eu seja um bom crítico, talvez um romancista ruim, mas um bom crítico. Por que sei que a vida é como um desses romances baratos – que sou obrigado a ler – cheio de clichês e piadas de mau gosto; um Roman Noir de banca de jornal. Um bom livro, pelo contrário, deve ser forte, como um tapa na cara ou um balde de água gelada, deve ser capaz de despertar o leitor dessa inércia, fazer com que ele veja que é apenas mais um perpetuador das misérias do mundo, e assim tente fazer algo para mudar sua situação; um bom livro deve ser como um espelho, que mostre ao leitor que ele é apenas mais um palhaço rindo da piada de mau gosto que é a vida.

No entanto, como eu já havia dito as coisas só começaram a mudar de perspectiva depois que conheci R.


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