quinta-feira, 11 de março de 2010

Fragmento: Capítulo 1 - Vernissage



É estranho imaginar como a mente é capaz de nos pregar peças, de como esquecemos e nos lembramos; e às vezes até com detalhes, de coisas que nunca aconteceram realmente. Às vezes basta uma sugestão, e as lembranças estão lá: uma tarde no parque ou um passeio pelo shopping, o vendedor de pipocas e os cartazes de cinema; está tudo lá: as cores, os cheiros e sons, mas na verdade nunca aconteceu. De como vemos uma coisa familiar e não a reconhecemos, ou de como vemos algo pela primeira vez e ele nos parece tão familiar. Um déjà vu. É estranho como a mente nos prega suas peças e nem sequer nos damos conta disso.


Por mais castanhos que fossem aqueles olhos, sempre achei que no fundo eles guardavam um matiz de verde-mar, algo distante. Sempre vi isso dês de a primeira vez. No entanto, agora tão de perto, começo a suspeitar de que esse verde esteve sempre em meu olhar, na minha mente, como uma de suas trapaças. Aqueles olhos não eram profundos, tão pouco misteriosos, como querem esses romances baratos - que sou obrigado a ler – que sejam os olhos da amante, que guardam segredos e enigmas. Pelo contrário, não havia enigma algum, dês de o início eles me pareceram algo familiar, e com o tempo, aprendi a conhecer cada mínima variação em seus olhares, quase sempre era capaz de dizer o que ela queria de mim, sem que fosse preciso uma única palavra, e quando fazíamos amor, havia uma ligação inexplicável, cada beijo, cada carícia, cada mordida; eu sabia exatamente quando ela queria de um jeito suave ou com violência, quando ela queria apenas sentir minhas mãos passeando por seu corpo, ou quando ela queria que eu puxasse seus cabelos com força enquanto a possuía. E depois de todo esse tempo, ainda agora, tão de perto, eu sei exatamente o que esses olhos querem de mim.


Às vezes a mente nos prega peças, e uma coisa acontece tão rápido que mal nos damos conta daquele fato, e depois, ao tentar reconstituí-lo, se torna algo como assistir um filme em câmera lenta. Foram tantos detalhes em uma sucessão tão rápida, que agora, ao rememorá-los, tudo gira de vagar, como naqueles pesadelos em que algo nos persegue, e por mais rápido que tentamos correr, na verdade não saímos do lugar e, tão pouco, conseguimos acordar. Esse foi exatamente assim, em câmera lenta: o corpo ensangüentado no chão, o estampido do disparo, o toque da campainha e as batidas nervosas na porta, os primeiros degraus da escada até a entrada, os passos rápidos pela rua movimentada, o brilho do gelo no fundo do copo vazio de uísque... Até o início. O início. Devo contar como a conheci.


“Bonita, não acha?” “Como?” “A pintura, quero dizer, não acha bonita?” “Ah sim! Realmente, muito bonita...”


Respondi a estranha que me abordava, mais por gentileza, do que por ter realmente uma opinião a respeito da tela a minha frente. Ela deve ter notado que, diferente dos demais convidados naquela vernissage, que simplesmente saltavam entre uma pintura ou outra, como quem folheia as páginas de um livro conhecido, com a segurança de suas bases intelectuais e opiniões formadas; eu, por outro lado, já devia estar em pé diante daquela tela a uns quinze minutos, tentando decifrar aquele enigma. Era uma pintura abstrata, e devo confessar que nunca fui capaz de compreender esse tipo de manifestação artística. Como escritor, estou familiarizado com aquilo que pode ser traduzido em palavras, com tudo aquilo passível de ser descrito ou narrado. Sou na verdade um racionalista, e aprecio a segurança que as palavras e a narrativa me proporcionam. Sempre apreciei as obras figurativas, das clássicas às contemporâneas: uma paisagem é uma paisagem e um retrato - um retrato, não importando o período ou o estilo da obra. Em particular, sempre gostei dos artistas que tentaram mesclar essas duas linguagens. A abstração, por outro lado, me assusta. Estava ali, em um esforço inútil de traduzir em palavras aquela pintura, quando a bela mulher de cabelos ruivos me abordou.



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