segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Jornal de Ontem (fragmento)

Lentamente o velho e enferrujado 38 de cano curto desliza por entre seus dedos, com três cápsulas vazias no tambor e a fumaça ainda escapando da boca. Só o baque da arma ao atingir o chão rompe o silêncio, cujo fundo era o compassado som de uma respiração ofegante e pesada, de uma respiração executada com os últimos esforços de quem luta para se manter consciente. Aos poucos os fortes cheiros de pólvora e sangue se mesclam e o calor de um entardecer ensolarado tornam o ambiente nauseante. As cortinas fechadas deixavam o cômodo mergulhado em uma semi-escuridão constante em todos os dias, mas agora, o abrir repentino da porta permite que a luz invada a sala, e o homem ajoelhado, cego pela claridade, cobre o rosto.
No chão de tacos ele leva a mão aos olhos, enquanto a outra permanece imóvel, no gesto de quem segura uma arma que já não existe. Um misto de emoções e sentimentos atravessam-no, e se tornam visíveis em sua face disformada: buccinatorius, zygomaticus, frontalis, orbicularis, procerus se contraem em espasmos involuntários. E a soma das emoções acaba por dar-lhe uma aparência horrenda e inexpressiva. Uma vez que seus olhos se acostumam à nova luz, o homem volta a encarar os dois corpos que jazem no chão. O rapaz, de uns vinte anos, atingido duas vezes no peito, vai aos poucos sendo envolto em uma poça de sangue. A moça, com a mão na barriga, tenta em vão conter o sangramento; ela fecha os olhos e a pesada respiração diminui, cada vez mais, até se tornar inaudível, até cessar de vez; na face pálida um fio de lágrima escorre, marca de um ultimo choro desconhecido...


(uma das técnicas de narrativa que eu costumo utilizar com frequência quando escrevo meus contos é iniciar a descrição da cena a partir de um ponto específico, como pode ser notado no início deste fragmento. Contudo as vezes eu costumo usar formas alternadas nas descrições, partindo também de uma perspectiva mais ampla. A seguir, no mesmo conto, pode ser observado: "Nunca vou esquecer aquela cena, a velha sala, ampla e vazia...")

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